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Navegar 2016 na coluna de Raphael Montes

Navegar 2016 na coluna de Raphael Montes

Na segunda-feira, dia 02, o escritor Raphael Montes compartilhou com o Brasil o seu parecer sobre a experiência vivida no norte do país graças ao projeto Navegar é Preciso. Confira abaixo, na íntegra o seu relato publicado em sua coluna no site do jornal O Globo.

Leia mais: A Amazônia da navegante Silvia Bernardi

Navegar é preciso
O Brasil é muito mais do que a gente vê no Facebook

Fernando Pessoa imortalizou a frase “Navegar é Preciso, viver não é preciso”. Na última semana, vivi uma experiência inédita: fui convidado a participar de um cruzeiro literário pelo Rio Negro, na Amazônia, ao lado dos colegas Zeca Baleiro, Clarice Niskier, Noemi Jaffe, Rodrigo Lacerda e Mário Prata. Aproveitei para passar o final de semana em Manaus e conhecer esta região do país — a única que eu ainda não havia visitado.

Sou apaixonado por conhecer a cultura de um povo — logo me embrenhei nas ruas antigas e mal conservadas do centro, a caminho do mercado popular, aos pés do Rio Negro, onde havia artesanatos indígenas, culinária local, óleos de andiroba e de copaíba e banha de sucurijú com poderes medicinais. Em uma loja no caminho, frascos com promessas reconfortantes: “Lava casa”, “Espanta inveja”, “Vence batalha”, “Amansa corno” e “Segura marido”. Comprei um “Tira olho grande” porque ando precisando.

Provei das especialidades à mesa do povo amazonense — tambaqui assado, pirarucu na grelha, tapioca de queijo coalho com tucumã e, finalmente, pato no tucupi, quando tive certeza absoluta de que havia chegado ao paraíso. Tudo acompanhado de generosas doses de suco de cupuaçu ou maracujá, claro. Na véspera do embarque ao navio, conheci a festa do boi-bumbá garantido, com todas as pessoas vestidas de vermelho, numa dança bem ritmada, com passos deliciosos de seguir. Mais tarde, soube que a disputa entre boi garantido (vermelho) e boi caprichoso (azul) é forte — como um eterno Fla x Flu regional. No final, quem sai ganhando é a boa música.

Finalmente, chegou a segunda-feira, dia de entrada no cruzeiro literário. Em uma feliz parceria da Livraria da Vila com a agência de viagens Auroraeco, esta foi a sexta edição do passeio que se propõe a equilibrar atividades na natureza com uma intensa programação cultural que inclui debates literários, teatro e apresentação musical. Logo que cheguei, me senti em um romance de Agatha Christie: “Vai acontecer um assassinato aqui”, brinquei com o Mario Prata.

Minhas expectativas eram altas — e foram todas superadas ao longo dos cinco dias. Reunido naquele espaço fechado, com conforto e pessoas interessantes, me esqueci do mundo lá fora. A desintoxicação começou logo na segunda-feira: fiquei sem 3G, nem sinal de celular tão logo o barco zarpou. Com as atividades e os ótimos papos entre leitores e escritores, o dia passava depressa. Fizemos trilhas pela mata, mergulho com boto cor de rosa, focagem noturna de jacarés e visitas a comunidades ribeirinhas e, de modo simbiótico, esse contato com a natureza alimentava a literatura; a poesia vinha de todos os lugares, até de onde menos se espera. Clarice Niskier anotou a explicação do guia Jefferson Dionísio, durante um passeio: “A floresta faz o homem entrar pra dentro do seu interior. Ao contrário do homem da cidade que quer aparecer, na floresta ele quer desaparecer pra se proteger do predador. Ele enfrenta suas fraquezas, sua força, seus demônios. Aprende a se perguntar: será que eu sou isso mesmo?”

Certa vez, na Flip, ouvi um autor convidado argumentar que não gostava de eventos literários, nem de debates entre escritores. Este escritor explicou que não tinha muito mais a dizer a seus leitores além do que já estava nos seus livros. Segundo ele, na literatura tinha tempo de refletir, revisar e escolher bem as palavras. Todo o resto era besteira. Sempre que sou convidado a eventos me lembro dessa história e, se concordo por um lado, por outro acho interessante perceber como os processos criativos são múltiplos, os interesses e filosofias são distintos. Ao longo dos debates, entre um passeio e outro, havia autores defendendo uma criação mais cerebral, enquanto outros defendiam a fluidez e a descoberta como caminho ideal. Alguns priorizavam a linguagem, outros, o tema.

Ao ser perguntado sobre a rivalidade entre alta literatura e aquela de entretenimento, Rodrigo Lacerda fez um belo comparativo com a floresta: há animais de diversos tamanhos entoando seus cantos e estes cantos não disputam entre si, mas se complementam. É assim que os estilos de literatura deveriam ser. É assim que os escritores deveriam se tratar: complementares, em vez de inimigos.

É assim que o cruzeiro literário é. O barco agrega, não dispersa, permite uma convivência próxima dos participantes com o público e, sem dúvida, este é o aspecto mais valioso da viagem: a troca. Conhecer leitores que vieram de todo o Brasil, trocar ideias com as pessoas, ganhar balas do Zeca Baleiro e fazer amigos na madrugada. Como bem disse Noemi em seu discurso de despedida, esses dias serviram para relembrar que o Brasil é muito mais do que a gente vê no Facebook. Não é só irracionalidade, discursos de ódio e Eduardo Cunha. Felizmente, o Brasil também é boto cor de rosa, é arara azul e é banho de rio.

navegar_2016 (134) edit1000

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