READING

Zeca Baleiro, múltiplo: músicas, livros e mais

Zeca Baleiro, múltiplo: músicas, livros e mais

Nascido no Maranhão e há muito radicado em São Paulo, o cantor e compositor Zeca Baleiro mantém uma agenda regular de shows ao longo de quase duas décadas de carreira. Ele costuma dizer que a estrada é o seu trabalho principal. Por onde andará Stephen Fry?, seu primeiro CD, foi lançado em 1997. Desde então, com mais de dez discos realizados, Zeca percorre o Brasil e ocupa um espaço singular na produção musical do país.

Letrista inspirado, de vocabulário vasto, sensível e flexível – vai do amor ao deboche, sem fazer concessões de estilo –, mantém uma estrutura de produção e parcerias que preservam o território da criação artística mais contínua, independentemente das tendências ou mudanças de rumos que dinamizam o consumo e a indústria fonográfica. Para lidar com as suas inquietações de autor, Baleiro pode eventualmente mudar focos. Já publicou dois livros, Bala na agulha, em 2010, numa edição de autor, e A rede idiota e outros textos (Reformatório), lançado no ano passado.

Ao responder a questão se escrever para ele é, pelo menos em tese, sempre um prazer, o músico diz que não: “Nem o ato de compor. Embora a canção, a música popular, seja revestida de uma aura de maior alegria e de maior leveza do que a literatura, mesmo nessa seara da canção às vezes há um pouco de sofrimento ao querer expurgar um sentimento ou dar vazão a um pensamento que é, de algum modo, doloroso. Acho que a literatura é feita quase que integralmente de dor, de sangue, suor e lágrimas. O Nelson Rodrigues, que estou estudando a fundo, diz que uma peça, o teatro – que era a literatura dele – que se preza a fazer rir, é quase imoral. Tem que fazer chorar, sofrer, fazer pensar”.

Entre os projetos que mobilizam o cantor e o compositor, está exatamente um musical sobre o dramaturgo Nelson Rodrigues, em 2016. No mesmo ano, Zeca já finaliza um DVD que é uma “versão visual” para o CD de músicas infantis Zoró [bichos esquisitos] – Volume 1, lançado do em 2014, quando o músico também divulgou Calma aí, coração, CD gravado ao vivo.

Em 2015, Zeca Baleiro canta Zé Ramalho: Chão de giz foi o lançamento de destaque. Com repertório tão vasto, ele sabe que, como artista, tem que “fazer a roda girar”. “Há algo de guerrilha no trabalho do artista também. Às vezes as pessoas te colocam num lugar que meio imaginariamente é mainstream, mas, na real, um artista da música, do tipo de música que eu faço, ainda tem um trabalho meio de guerrilha, de ir a lugares distantes. Se fui convidado, eu vou. Estou nesse ritmo há 18 anos e nesse período nunca tirei férias, inclusive porque férias me entediam rapidamente”, diz Zeca.

Na agenda (sempre muito disputada) de 2016, ele participa do projeto Navegar é Preciso, a viagem ecoliterária realizada há seis anos pela Livraria da Vila e pela Auroraeco. Leia a seguir a entrevista que o cantor  e compositor concedeu à Vila Cultural.

zeca baleiro 03

Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?

Zeca Baleiro. Há entrevistas e entrevistas. Tem um tipo de entrevista que faz parte da rotina e que é quase semanal, já que viajo muito fazendo shows, o meu trabalho principal. A cada fim de semana, você acaba dando três ou quatro entrevistas para jornais e sites da cidade onde vai se apresentar. E aqui ou ali você se surpreende com uma ou outra pergunta que nunca respondeu ou com uma resposta que nunca deu.

Mas na maioria das vezes é o de sempre, o de praxe. E tenho certo prurido ético de fazer recorta e cola, sabe? Mesmo que o conteúdo da resposta seja o mesmo, eu mudo a forma. Mas se você me perguntar se tenho prazer em dar entrevistas, não tenho. Dou porque é inerente ao trabalho: lidar com jornalistas, com o público. Mas não é um tipo de compromisso que me dê alegria, não.

Acontece eventualmente de abordar temas diferentes e isso sempre pode dar uma arejada também.

VC. Há quanto tempo você está na estrada?

ZB. São 18 anos nesse ritmo e começo a sentir vontade de dar umas paradas um pouco mais longas, de me reciclar, de fazer outro tipo de coisa. Agora, por exemplo, trabalho num musical baseado na obra de Nelson Rodrigues. É uma ideia minha e da diretora Débora Dubois. Estou bem empenhado nisso, que é algo que me divirto muito fazendo. E sai um pouquinho desse métier que é a roda-viva de show-disco-show.

VC. Desde quando se interessa por Nelson Rodrigues?

ZB. O projeto é recente, mas a paixão é antiga. Há a obra do dramaturgo – que conheço um pouco, claro –, mas pra mim o mais interessante é o cronista, falando de maneira bem genérica. Porque ele escreveu crônica esportiva, teve livros com pseudônimo feminino em que deu conselhos sentimentais, escreveu os famosos contos suburbanos. A prosa do Nelson é o que mais me fascina. Lembro que quando li, há muito tempo, À sombra das chuteiras imortais, uma coletânea de crônicas esportistas, fiquei fascinado porque o futebol ali é um pretexto para ele desfilar aquela poesia exuberante, cheia de adjetivos.

Sempre fui fascinado por ele. A ideia do musical – de juntar tudo isso, essa prosa com o ambiente do rádio dos anos de 1950, os anos dourados – surgiu em 2012, na época do centenário de nascimento dele. Foi quando a gente começou a pensar no espetáculo, mas outros projetos se colocaram no meio e agora, em 2016, finalmente vai acontecer. E acho bom que tenha ficado longe da efeméride porque separa uma coisa da outra. Não tem que associar a nada porque a obra dele é eterna. E vai ficar bacana.

VC. Não deve ser tarefa simples fazer um musical sobre Nelson Rodrigues.

ZB. É bem difícil sim. Na verdade, o texto é uma colagem de textos do Nelson Rodrigues – que é o que eu estou fazendo. Todas as falas e todos os personagens foram escritos por ele. Mas aparecem colados de maneira a ter um enredo, algo sequencial. E no meio disso tem esse ambiente de rádio dos anos 50. Compus algumas músicas emulando canções daquela época: as serestas, o baião, que reinava um pouquinho, a música dos anos de
1940/50. Falando assim parece um “angu de caroço”, mas vai resultar numa coisa muito bacana.

VC. Pode falar sobre os dois livros que publicou?

ZB. Escrever para mim sempre foi mais um exercício de estilo – meio existencial, meio filosófico – do que uma pretensão profissional. Meu ofício é compor, é o que eu gosto de fazer e o que sei fazer. As outras coisas são derivações naturais com as quais eu acabo me envolvendo por causa das minhas inquietações.

Comecei a escrever de um modo mais efetivo a partir de 2006, quando comecei a questionar um monte de coisas, com filhos na passagem da infância para a adolescência e o mundo mudando tanto que eu fiquei muito inquieto. Comecei a publicar numa seção chamada Bala na agulha, no meu site. Não havia uma regularidade.

Quando me dava na telha, eu escrevia e colocava lá textos sobre política, música, tecnologia, futebol, comportamento, sobre o que me interessasse. Aquilo começou a ter uma resposta do público que me surpreendeu. As pessoas começaram a me cobrar que eu compilasse, transformasse num livro e tal, o que até então honestamente não fazia parte dos meus planos.

Mas a partir dali eu comecei a pensar e o insight do primeiro livro se deu no dia em que eu entrei numa livraria e dei de cara com uma gôndola repleta de livros da Bruna Surfistinha, do Paulo Coelho, do Augusto Cury, todos grandes vendedores. Na segunda, na terceira e na quarta gôndolas tinha João Ubaldo Ribeiro, Philip Roth, etc etc etc. Ali eu pensei: “Em alguma gôndola, entre esta ou aquela, eu acho que posso estar”.

Aí eu comecei a aceitar a ideia de que eu poderia fazer o livro, “envenenei” o material que eu tinha com dois capítulos de aforismos e algumas provocações e eu mesmo lancei uma edição de autor. E teve uma recepção que excedeu as minhas expectativas. Participei de feiras literárias, convivi com pessoas com as quais eu não convivo normalmente, de outros universos. E isso acabou gerando um convite da revista Isto é para ter uma coluna mensal, que escrevi durante cinco anos.

O segundo livro é uma compilação desses textos. Foi uma coisa bem pontual. Naturalmente ainda sinto aqui e ali a vontade de escrever contos ou alguma outra coisa-modalidade, mas outro livro não é um projeto para já. Acho que é um bom projeto para maturidade.

VC. Você faz 50 anos em 2016. Esse tipo de data tem alguma relevância para você?

ZB. Toda passagem de década acaba por ser um grande marco. Especialmente a partir dos 30, citando aqui até as balzaquianas, um termo que Nelson Rodrigues gosta bastante de usar. 40 também. 50 tem um simbolismo maior ainda. É mais redondo, metade de um século. É data emblemática. É óbvio que faz pensar. Mas eu acho que o que interfere muito na forma como você envelhece ou amadurece é a forma de viver, o ritmo que você imprime, a leveza que você imprime na sua vida.

Isso pra mim é um fato real. Quem vive muito pesadamente, envelhece mais rápido. Não que eu seja um primor de leveza, mas eu tento levar a vida com certo humor. E a música também tem por si uma coisa muito jovial, na origem. Tocar, se comunicar através da música. E isso rejuvenesce de alguma maneira. Por natureza, a música tem algo de adolescente. Aquele sonho rock’n’roll de “vamos pegar a estrada, as garotas, as bebidas”. Embora as coisas tenham mudado um pouquinho, esse sonho juvenil da estrada permanece um pouco no imaginário.

VC. Onde mais encontrar leveza num momento histórico e social que parece tão pesado?

ZB. Acho que está cada vez mais difícil. Não só pela coisa circunstancial, dos tempos de crise, que espero e desejo que passe logo. Para além dessa situação do momento, acho que há uma mudança mais profunda no mundo. A gente está vivendo uma mudança de era e estamos bem no meio dessa passagem. Há um novo tempo que virá mas ainda não sabemos muito bem como é e às vezes ele se apresenta um pouco assustador – e quem tem filhos adolescentes sabe bem do terror do qual estou falando.

E tem um mundo que vai ficando um pouco pra trás, mas ainda há réstias dele na nossa forma de viver, no nosso modo de pensar. E essa transformação está sendo muito acelerada pela tecnologia, pelas redes sociais, pelas novas formas de comunicação. Isso é assustador também: um tempo novo se instaurando, mas que parece sombrio e obscuro e até retrógrado num certo sentido.

Parece que é evolução mas ao mesmo tempo parece que o pensamento involui ao invés de evoluir. Todas as conquistas de algumas gerações passadas, que foram muito importantes, como as dos anos de 60 e 70, começam a recrudescer, com uma inversão de valores. Isso tudo é assustador. Mas como diz o samba: “desesperar jamais”. Ou como diz a música do meu querido amigo Valter Franco, é hora de manter “a mente quieta, a espinha ereta e
o coração tranquilo”.

Manter um pouco a calma e a elegância, porque é um tempo delicado este. E manter os princípios também, porque não pode virar um vale-tudo absoluto só porque o político faz isso, a personalidade faz aquilo, o jogador de futebol faz isso, e agora tudo se permite. Não. Tenho valores e tenho que mantê-los. É o único farol que tenho porque eu não acredito em Deus como alguns místicos acreditam ou em gurus como outros acreditam. Tenho que acreditar num certo princípio de justiça, de conduta.

VC. Como é produzir música para crianças?

ZB. É algo que rejuvenesce bastante também: trabalhar e ter uma interlocução com crianças. Este trabalho tem me levado a experiências muito legais. Outro dia fui convidado por uma amiga para ir a uma escola pública, na zona leste de São Paulo, onde fui surpreendido porque as crianças sabiam cantar quase todas as canções, me corrigiam quando eu errava a letra. É muito legal ver aquilo, inclusive porque eu comecei no teatro infantil e este disco, de certa maneira, é uma volta às origens.

Fiz essas canções para os meus filhos, que hoje têm 17 e 15 anos. Na época, tinham uns quatro anos, com aquelas falas lúdicas que acabavam me inspirando. Eu contava histórias através de músicas, que é o meu modo de contar histórias, e isso acabou gerando umas 80 canções. Então tem algumas sobrando, com as quais eu ainda vou fazer o volume dois, muito em breve. Mas antes disso tive uma ideia com um amigo que é animador, o Marcos Faria, um cara genial, talentosíssimo, de fazermos um DVD com algumas dessas canções – 11 exatamente – animadas.

Está ficando uma delícia, superdivertido e estou me sentindo o Walt Disney do Terceiro Mundo. Está quase pronto, na fase de pós-produção, sonorização e dublagem, e deve ser lançado no ano que vem. Essas coisas que geram alegria, que geram prazer, também mantêm a peteca da jovialidade.

VC. Qual a expectativa para viajar no Navegar é Preciso?

ZB. O fato superespecial de estar literalmente num barco com escritores, alguns que conheço e admiro bastante com o Mario Prata e o Fernando Morais, e outros que eu vou ter o prazer de conhecer, já cria as melhores expectativas. Fiquei feliz que deu certo, porque já faz uns dois que tentávamos, mas as agendas não batiam. Acho que vai ser bem agradável a combinação de literatura com boas conversas.

*Texto originalmente publicado na revista Vila Cultural, uma publicação mensal da Livraria da Vila.

Pin It

POSTS RELACIONADOS

INSTAGRAM
Visite nosso Instagram