Noemi Jaffe estreia como romancista

A escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe lançou Írisz: as orquídeas (Companhia da Letras) dia 9 de junho de 2015 na Livraria da Vila da Fradique. O livro é o primeiro romance desta autora que participará do Navegar é Preciso 2016. Noemi diz que foi difícil dar voz aos dois personagens que se alternam ao contar a história. O maior desafio da escritora, entretanto, foi enfrentar sua severa autocrítica, já que, na função de avaliar e perceber o trabalho de outros autores também costuma ser rigorosa.

Noemi é autora de O que os cegos estão sonhando (Ed. 34), misto de biografia e ensaio que escreveu a partir dos diários de sua mãe, refugiada da Segunda Guerra, A verdadeira história do alfabeto (Companhia da Letras), de contos, Todas as coisas pequenas (Hedra), Do princípio às criaturas (Capes), Folha explica – Macunaíma (Publifolha), Ver palavras, ler imagens – Literatura e arte (Global) e Quando nada está acontecendo (Selo Martins), que também é o nome do blog de Noemi.

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Professora de escrita criativa, curso permanente que comanda na Casa do Saber, em São Paulo, a escritora cita sentimentos confusos ao estrear como romancista. “Fico ansiosa, nervosa, feliz, com medo. Mas acho que há chance de que as pessoas gostem do livro. As poucas pessoas que leram gostaram muito”, afirma. A boa notícia para os leitores de seus textos sempre meticulosos é que ela gostou da experiência da ficção e já tem uma outra história pronta para virar romance.

Para Írisz: as orquídeas, Noemi chegou a entrevistar Armênio Guedes, o ilustre dissidente comunista que morreu recentemente, quando construía, no romance, o personagem Martim, diretor do Jardim Botânico de São Paulo na ficção. “Eu precisava entender o que significou para a militância de esquerda brasileira a invasão soviética na Hungria em 1956, um dos temas centrais da narrativa do romance”, escreveu, no blog da editora.

“(…) Como todo bom socialista, Armênio era um otimista. E, nesse otimismo, na dignidade simultaneamente orgulhosa e humilde de quem ajudou a construir a história da esquerda no Brasil, eu conheci um homem íntegro. Espero que Martim também seja assim e que a memória de Armênio Guedes resista e seja honrada num personagem que é ficcional mas que, por isso mesmo, pode nos remeter à infinitude de detalhes do real”, conclui Noemi. 

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Leia a seguir a entrevista que ela concedeu à Vila Cultural.

Vila Cultural. Alguns autores dizem que o primeiro romance pode ser uma experiência devastadora. Foi para você?

Noemi Jaffe. Devastadora não. Foi bem difícil a ideia de criar os dois personagens, uma mulher e um homem, e conseguir fazer com que cada um soasse genuíno, individual, complexo, consistente. Esse foi o maior desafio. Houve momentos de muito sofrimento porque costumo escrever mais em alguns períodos. Não fico escrevendo diariamente. Por trabalhar demais, não tenho muito tempo na minha rotina para me dedicar exclusivamente à escrita.

Em janeiro do ano passado, fui para Paris, fiquei um mês lá e escrevia todos os dias. Depois, em julho, já em São Paulo, aluguei o consultório de uma amiga e fiquei o mês inteiro trabalhando. A maior parte do romance foi escrita nesses dois meses. O resto do tempo eu ficava corrigindo. Corrigindo, corrigindo, corrigindo.

Esses períodos de correção foram muito difíceis porque costumo ser muito crítica em relação ao que escrevo. Achava sempre que estava tudo muito ruim. Tudo muito técnico, mas pouco sensível. Não tinha uma voz, uma dicção verdadeira. Vivi o sofrimento de transformar a técnica em verdade.

VC. Como surgiu a ideia do livro?

NJ. Estava decidida a escrever um romance e vinha da experiência da história da minha mãe. Fiquei durante muito tempo lendo sobre a Segunda Guerra, sobre o judaísmo, e estava, como sempre estou, contaminada pela ideia da tragédia. Mas eu não queria mais falar de judeus. Não aguentava mais. Lembro-me de estar sentada numa praia no Rio e pensar: “Quem é a personagem para o romance?”.

E lembrei que na letra I do livro A verdadeira história do alfabeto há uma personagem húngara chamada Írisz. Gosto muito desse nome e sou apaixonada pela Hungria. Aí, pensei: “Ela é a personagem do meu romance”. Ela é húngara – não é judia. E o que ela faz? Ela foge. Porque também gosto da ideia de uma pessoa que foge, que nunca consegue ficar no mesmo lugar.

Qual é a profissão dela? Algo que eu gostaria de ser, mas nunca serei. Botânica, decidi. Porque admiro muito quem trabalha com plantas. Ela é húngara, ela foge, ela é botânica. E do que é que ela foge? Lembrei da Revolução Húngara, de 1956, que é um episódio que me marcou muito e que eu sempre tive a curiosidade de entender. Uma história linda e trágica. Só sabia disso quando comecei a escrever. Ao pesquisar plantas dos jardins de Budapeste, decidi que ela estava estudando a ginkgo biloba, uma árvore muito comum na Hungria.

Mas depois compreendi que não dava para a história ser lá. Foi quando surgiu uma amiga dela, da Írisz, que trabalha no Jardim Botânico de Budapeste e consegue o convite para ela vir trabalhar no Jardim Botânico de São Paulo para estudar as orquídeas. As orquídeas têm dificuldade de se ambientar em lugares muito frios como a Hungria. Então, ela viria estudar aqui para saber o que seria necessário para que as orquídeas se ambientassem lá.

VC. Uma mulher e as orquídeas…

NJ. Quando comecei a estudar as orquídeas, vi que elas têm tudo a ver com a Írisz, porque não criam raízes na terra. Elas fazem raízes no ar. Como uma mulher que nunca se fixa em lugar nenhum e não consegue ter raízes. Comecei a criar essas metáforas associando a Írisz e as orquídeas. Então ela começa a escrever relatórios para entregar para o Martim, que é diretor do Jardim Botânico, para falar das orquídeas que ela está estudando.

Mas ela é bem maluquinha e, no meio do relatório, começa a falar sobre o namorado que deixou em Budapeste, da mãe que está doente, do pai que ela não conheceu e do próprio Martim. E os capítulos vão se alternando: ela falando e Martim falando.

VC. E quem é o Martim?

NJ. Um comunista ferrenho, mas desencantado justamente por causa da Revolução Húngara, que cindiu com o Partido Comunista no mundo inteiro. O Sartre e o Camus na França, e o Jorge Amado e o Armênio Guedes (que entrevistei no ano passado) aqui no Brasil, por exemplo, viveram esta grande cisão do Partido Comunista justamente por causa dessa revolução. Martim está perplexo ao entender a verdade a partir do que aconteceu
na Hungria, que foi invadida pela União Soviética, o que fez com que num único dia três mil pessoas fossem mortas.

VC. A sinopse do livro fala em “limites da ideologia e as agruras do amor”. São ingredientes fundamentais para uma tragédia?

NJ. Não sei se fundamentais porque eu acho que dá para fazer uma tragédia sobre qualquer coisa, inclusive sobre uma caneta. Mas sem dúvida que estes elementos são muito trágicos. Tanto a ideologia como o amor são quase sinônimos de desencanto porque tanto uma utopia ideológica como uma utopia amorosa são difíceis de dar certo. Pela experiência da história do mundo, são coisas que não costumam se realizar principalmente quando caminham juntas, como é o caso da Írisz e do Imre, o namorado dela na Hungria.

Ele era um sonhador, um idealista que tinha certeza que ia conseguir libertar a Hungria da União Soviética. E o amor deles estava muito relacionado ao que estava acontecendo lá. Não tinha jeito de não ser trágico.

VC. De onde vem o seu gosto pela tragédia?

NJ. Nada dá pra identificar exatamente, mas acho que muito pelo fato de eu ser filha de uma refugiada, de minha mãe ser uma sobrevivente de um campo de concentração. Essa ideia de que o ser humano é trágico é algo muito constitutivo da minha personalidade. Como na tragédia grega, estamos o tempo todo tentando desafiar o destino, mas somos sempre esmagados por ele. Embora eu seja, como a minha mãe, uma pessoa muito alegre,
sempre muita disposta, com vontade de lutar pelas coisas, parece que no fundo eu tenho essa certeza.

Outro aspecto também é que, como professora de literatura durante muitos anos, eu vejo que a boa literatura, a grande literatura, é feita de incômodo. Ela não serve para pacificar os sentimentos, mas para perturbar, para desacomodar as pessoas do lugar onde elas estão. É muito difícil uma literatura boa que seja animadora. Existe, mas é raro. E os livros e os autores de que eu mais gosto são tristes. Dostoiévisk, Drummond, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Thomas Mann, Thomas Bernhard, BorgesKafka, Becket.

Mas eu também adoro, amo Manuel Bandeira, que é melancólico, mas não trágico. É melancólico, mas é doce. Adoro Ítalo Calvino, Cortázar. Mas gosto muito da literatura assim chamada “pesada”.

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VC. E de onde vem seu gosto pelas palavras e pela leitura?

NF. Não sei direito, mas desde a infância é assim. Na minha família não houve esse estímulo. Meus pais não tiveram condição de estudar e tínhamos poucos livros em casa. Mas acho que é pelo fato de eles me contarem muitas histórias. Eu era a filha mais nova e minhas irmãs já eram grandes quando nasci. Meus pais me contavam as histórias da guerra e minhas irmãs também. Também se falava muitas línguas na minha casa. E sempre fui apaixonada por línguas.

Tinha um tio que sempre me dava muitos livros de presente de aniversário. E adorava ler poemas. Desde pequenininha eu já gostava de escrever poesias e letras de música. Lembro-me quando meus pais voltaram do Rio de Janeiro, onde eles tinham visto o show Construção, do Chico, em 1970. Eu tinha oito anos quando eles me deram o vinil, que trazia as letras das músicas. Fiquei louca. Escrevia letras com a mesma estrutura trocando as palavras de lugar. É um gosto meio atávico.

VC. Por que demorou a publicar?

NJ. Faltava tempo. E coragem. Sempre fui professora, professora, professora. E queria ser escritora. Fazia tantas coisas que achava que era um sonho que eu nem ia se realizar. Quando publiquei o primeiro livro, pensei: “Acho que está acontecendo”. Desde a adolescência eu participava de concursos. Nos colégios, todos diziam que eu era a melhor aluna de redação. Tinha os diários e os cadernos.

Depois que publiquei, fui chamada para escrever na Folha de S. Paulo e comecei a assinar como crítica literária também. Aí começou a ter uma repercussão, um retorno dos meus textos. Começaram a me chamar para escrever ensaios. Comecei a escrever um blog, com repercussão muito boa também. Foi quando saí das escolas e comecei a dar aulas de escrita criativa.

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VC. Escrita criativa dá pra ensinar?

NJ. Totalmente. Porque você não pega ninguém do zero. Todas as pessoas que vão fazer um curso de escrita criativa já escrevem. Elas não querem aprender a escrever. Elas querem melhorar o que já fazem. Isso é possível com qualquer coisa. Não existe nada que o ser humano faça que não dê pra melhorar. Como? Treinando muito. O que a gente faz nas aulas é treinar muito e aprender que cada um tem que lidar com o próprio estilo.

Não há um “estilo fixo” ao qual todo mundo tenha que se adequar. Cada um aprende o que tem que fazer para melhorar o seu estilo, as suas técnicas. É reconhecer o que você já faz para conseguir burilar aquilo. Não há nada em que não dê para fazer isso. Se você quiser aprender a nadar, por exemplo, como que faz? É impossível? Claro que não. Tudo dá. Não tem o que não dê. Quer aprender a jogar futebol? Vamos lá e vamos aprender. Não tem essa mitologia de que escrever é uma coisa congênita, gênio natural. Não é.

VC. E a história da inspiração…

NJ. Eu não acredito em inspiração. Acho que a inspiração é o resultado de um processo inconsciente, consciente, intuitivo, imaginativo e intelectual que se dá quando você trabalha. É uma explosão mental de forças que se combinam quando você não para de trabalhar. Aí, tudo aquilo que está acontecendo, o material com o qual você está lidando mais a memória, a experiência e o conhecimento, a circunstância, tudo explode, entra num tipo de combustão interna que só acontece quando você trabalha.

É o que Picasso falou: “Se a inspiração vier, ela vai me encontrar trabalhando”. A inspiração para mim é essa combinação, essa explosão mental que qualquer pessoa pode ter se se dedicar. É uma questão de concentração, disciplina, vontade, pesquisa. Isso é você fazer a inspiração. Porque ninguém tem um inconsciente pior do que o outro. Não é que eu não acredite em inspiração: eu só não acredito que a inspiração seja esse sopro divino que surge do nada.

A não ser no caso, sei lá, de um Mozart, um Shakespeare, por uma disfunção cerebral. É isso que eu falo para os meus alunos. Eu já vi coisas incríveis. Pessoas que, em alguns momentos, você chega a pensar: “Melhor ele desistir, não tem como”. E, ao contrário, ele insiste e quando você vê, escreve bem.

VC. Como você define a experiência de escrever?

NJ. Escrever, para mim, é descobrir o que estou pensando, o que eu não sei. Escrevo para saber. Quando escrevo, as palavras vão se combinando e definindo para mim o que estou sentindo. É bom porque esclarece muita coisa que eu não sabia e eu descubro na hora que eu escrevo.

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VC. Como tem lidado com a nossa tragédia cotidiana num momento tão peculiar da história do Brasil e do mundo?

NJ. Acho dificílimo. No blog e no Facebook, que são dois lugares que eu frequento muito, tento me localizar, criar um espaço um pouquinho menos ocupado, menos tenso, para entender as pulsões todas que estão em jogo, essa polarização absurda, com uma mediocrização do pensamento, das posições. Tento encontrar um lugar do meio, que eu acho que é a saída, a única possível. Ficar no meio. Não é ficar nem de um lado nem de outro.

Mas tem muito pouca gente disposta a encontrar as vantagens do meio, das relativizações, de ver que tudo tem dois lados ou mais – três, quatro, cinco, todas as nuances. O real está sem nuances, sem sutilezas. Eu fico tentando enveredar por esse caminho, com muita delicadeza, porque está tudo tão sujeito a ser esmagado. Assim que você se expressa já vem um monte de gente com pedra condenando. Então tudo tem que ser muito bem pesado. Eu tento, mas também não estou entendendo nada. Estou achando tudo muito estranho: o governo, a oposição, o congresso, o meio ambiente, os índios. Tá difícil.

*Texto originalmente publicado na edição 134 da revista Vila Cultural, uma publicação mensal da Livraria da Vila.

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