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Rodrigo Lacerda: Shakespeare para a moçada

Rodrigo Lacerda: Shakespeare para a moçada

Em Hamlet ou Amleto? – Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos (Zahar), o escritor Rodrigo Lacerda compartilha todo o seu gosto pela obra de William Shakespeare (1564-1616) de maneira cativante. Além de apresentar o texto e a poesia original do dramaturgo inglês, comentando todas as referências da peça, Lacerda monta sua própria narrativa, com uma linguagem contemporânea para a história do ilustre príncipe dinamarquês.

Há, no livro, uma voz que acompanha e conduz o leitor pelo universo shakespeariano. E é exatamente o narrador quem dá o tom e os detalhes do que seria uma estreia de Hamlet: a grandiosidade do palco dinâmico e com caráter tridimensional, a precariedade dos efeitos sonoros e de iluminação para as apresentações que aconteciam sob a luz do dia e a céu aberto, e o desafio dos atores que eram obrigados a encenar os papéis femininos numa
época em que somente os homens atuavam.

No final do livro, Lacerda ainda publica um apêndice com três breves seções, em que divide outras referências: Hamlets que li, Hamlets que vi e os Elogios, críticas, paródias e anedotas sobre Hamlet. “O que o Rodrigo fez não foi Shakespeare para os simples, foi ajudar a vencer os obstáculos e ir direto ao inesquecível, ao fantástico e ao poético. Hamlet depurado, um atalho para o encantamento”, escreve Luis Fernando Verissimo na quarta capa do livro.

Não é a primeira vez que Shakespeare inspira Lacerda. Ao contrário, o fascínio que ele tem pelo autor vem de longa data – e influencia não só a sua obra como outras escolhas determinantes. Duas décadas atrás, o escritor estreou no mercado editorial com o elogiado O mistério do leão rampante (Ateliê Editorial), já traduzido para o italiano e para o inglês e ganhador dos prêmios Jabuti (1996) e Caixa Econômica Federal/CBN, além de ter dado a Lacerda o prêmio de Autor Revelação da Bienal do Rio (1995).

Na trama, Shakespeare é um dos personagens que atravessa a história de uma jovem inglesa, que, por causa de um feitiço que a impede de amar, se envolve com médicos, padres exorcistas, curandeiras e, finalmente, desperta para os poderes curativos do teatro. No livro O fazedor de velhos (Cosac Naify), em que Lacerda narra a passagem do jovem Pedro para a vida adulta, há um capítulo em que o Rei Lear, outro ilustre personagem da obra de Shakespeare, aparece com “ares autobiográficos”, já que o filme homônimo (de 1984, do diretor Michaels Elliott), como Lacerda revela nessa entrevista à Vila Cultural, causou impacto considerável quando, na adolescência, o escritor o assistiu.

Tradutor premiado (de autores como William Faulkner, Alexandre Dumas e Raymond Carver), professor e editor, Lacerda já publicou, entre outros, A dinâmica das larvas (Nova Fronteira), Vista do Rio (Cosac Naify) e A república das abelhas (Companhia das Letras), um projeto memorável no qual pesquisa e documenta a história de seu avô, Carlos Lacerda, um dos políticos mais controversos do país.

Salvador da pátria para alguns ou reacionário feroz na percepção de seus opositores, Lacerda teve participação decisiva na política brasileira. O livro é uma autêntica saga familiar que começa por volta de 1870, quando o abolicionista e republicano Sebastião de Lacerda entra na vida pública. Entre 1930 e 1960, seu neto, Carlos Lacerda, consolida-se como o principal adversário de Getúlio (que se suicidou em 1954) e, em seguida, do getulismo.

Entre republicanos, abolicionistas, liberais, socialistas, comunistas, explosivos, admiradores, idealistas e destruidores sistemáticos, os “personagens” formam A república das abelhas que dá o título do livro de Rodrigo Lacerda. Leia a seguir a entrevista do escritor, que é convidado da edição 2016 do projeto Navegar é Preciso, a viagem promovida pela Livraria da Vila e pela Auroraeco ao Rio Negro, na Amazônia.

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Vila Cultural. Poderia explicar o título do livro?

Rodrigo Lacerda. Nas traduções antigas de Hamlet, muita gente traduzia como “amleto”. E fiz essa brincadeira, no título, porque a ideia original era uma adaptação de Hamlet para jovens. Acontece que adaptações normalmente se apropriam da história da peça para recontá-la com outras palavras e o texto de Shakespeare desaparece.

Eu queria uma adaptação que, de alguma forma, colocasse o leitor jovem – ou o marinheiro de primeira viagem de qualquer idade, a pessoa que nunca leu Shakespeare – em contato com o texto shakespeariano para que ele sentisse um pouco toda a graça da peça. Porque a graça não está tanto na história. Está mais na poesia. Claro que a história do Hamlet é maravilhosa, mas é a poesia de Shakespeare que fez o negócio continuar rendendo por quinhentos anos.

VC. De onde vem o seu gosto por Shakespeare?

RL. Sempre gostei de ler teatro, que é algo que as pessoas não têm o hábito de ler justamente porque não há a figura do narrador – e tudo se dá através das falas dos personagens. E tenho um especial interesse por Shakespeare porque ele é, digamos, muito “precoce” na criação de personagens de uma riqueza psicológica incrível. Ele é quase freudiano – quatrocentos anos antes de Freud. E não por acaso Freud era um grande leitor de Shakespeare.

Há uma intensidade psicológica na maneira como Shakespeare constrói mudanças, evoluções ou involuções. Desde os meus 17 anos, quando eu vi o filme Rei Lear, com o Laurence Olivier, fiquei apaixonado pela obra do dramaturgo. Depois veio HamletRomeu e Julieta, entre outros tantos.

Ainda muito jovem, com uns 20 anos, fiz um curso com a Barbara Heliodora, que é a grande especialista em Shakespeare do Brasil, e nunca mais perdi o contato. Tanto que ele já apareceu em outros livros meus. No livro juvenil chamado O fazedor de velhos, por exemplo, há um capítulo inteiro sobre o Rei Lear, quando o personagem faz uma pesquisa sobre ele.

VC. Como autor, pesquisador, historiador ou editor, sua trajetória faz pensar também sobre a riqueza e a diversidade da sua obra. É uma escolha?

RL. Há escritores que, já no primeiro livro, encontram a voz literária que eles terão para o resto da vida. Outros escrevem dois ou três livros até encontrar essa voz. Tanto no jeito de escrever quanto nos temas, eu costumo me cansar de “estudar” sempre a mesma coisa. Normalmente quando uma pessoa, por exemplo, defende a tese de doutorado, ela fala: “Agora eu domino esse assunto, esse é meu território e vou me especializar nisso”. E continua pesquisando.

Quando conclui minha tese de doutorado (sobre o escritor João Antônio), eu falei: “Graças a Deus que acabou, porque eu não aguentava mais escrever sobre ele e nunca mais eu quero escrever nada sobre isso”. Não gostar de me repetir tem reflexos positivos e negativos na minha imagem como escritor.

Positivos porque nunca vão poder me acusar de seguir uma fórmula. Por outro lado, fica uma coisa muito variada, que é difícil de a crítica me enquadrar nessa escola, nessa turma, nessa panelinha. Luto contra isso. E cada livro, cada história me pede um jeito de narrar. É um trabalho dobrado porque, para cada livro, tenho meio que inventar a roda de novo.

VC. Mas há uma unidade, uma coerência que vem dessas diferenças todas.

RL. Todo livro tem a minha voz. Mas ela não é rígida, fixa, do tipo que sirva para todo mundo. Aparece num livro e aí eu fico dois ou três sem usá-la. Um dia ela reaparece. Mesmo que tenha algo de mais constante, não é uma constância que me permita dizer que a “minha voz literária nunca mudou”. O próprio João Antônio ou um Rubem Fonseca são escritores que, uma vez que encontraram o estilo deles – o tom, a voz –, mantiveram uma produção incrível e têm um traço estilístico que é reconhecível no primeiro parágrafo.

Você lê o João Antônio e em dois parágrafos sabe que é João Antônio. Tem a cara dele, está marcado ali. E o Rubem Fonseca também. Outros escritores já têm uma variação maior. O João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, tem livros de humor puro e tem um livro como O povo brasileiro, que é uma saga histórica.

VC. Você estreou no mercado editorial ganhando um Prêmio Jabuti. Que percepção tem hoje dessa experiência? Ser um “autor estreante premiado” pesou em algum momento?

RL. Ganhar o prêmio foi uma alegria, ainda mais pelo fato de o livro sair por uma editora que estava estreando na época, a Ateliê Editorial. O meu livro era o único da editora. Estreamos juntos, na verdade. Ver a repercussão que o livro teve, as ótimas críticas, o prêmio, foi tudo bem legal. Mas há um peso sim. Quando lancei o segundo livro, lembro de uma entrevista de um agente literário falando que, na França, quando você faz um primeiro livro que é um sucesso, existe a maldição do segundo livro, que vai ser um fiasco.

Acho que essa maldição pesou um pouco para mim. Quando você é tão jovem – eu tinha 25 anos –, não tem controle sobre o que vai escrever. Nem agora tenho. Então a angústia de não deixar a peteca cair no segundo livro é aumentada pelo fato de o primeiro ter sido um sucesso. Houve o lado bom, que foi uma honra e uma alegria, mas o desconforto, um frio na barriga, de se perguntar: “O que eu vou fazer para manter o padrão?”. Fiquei
superangustiado. Costumo brincar que quando me elogiam eu desconfio e quando criticam aí eu deprimo.

VC. Faz parte do ofício, afinal…

RL. Sempre me pergunto que, se eu pudesse escolher, eu preferiria ser um escritor tipo Maquiavel, que escreveu dois livros na vida e ficou imortal já com um deles, pequenininho, um livro fino, ou um Jorge Amado que tem 30, uns melhores que outros. E sempre preferi me projetar em escritores de uma produção mais copiosa – que não têm medo de errar e que vão fazendo. E que não ficam engasgados por estarem o tempo todo envolvidos num projeto novo, sem parar muito pra pensar se o projeto anterior foi bom ou foi ruim.

É a minha maneira de brigar com essa angústia e com essa cobrança interna do tipo: “Será que o livro está bom? Será que as pessoas vão gostar?”. Não dá pra pensar nessas coisas, inclusive porque você não controla a maneira como um livro será recebido. Só tem um jeito de driblar isso: eu começo a escrever outro imediatamente ou, de preferência, vou escrevendo dois ao mesmo tempo.

VC. Não há sofrimento para escrever então?

RL. Depende do livro. República das abelhas foi um livro mais sofrido, porque, além da pesquisa histórica e da pesquisa familiar, tinha o desafio de captar um pouco a cabeça daquele avô, que eu conheci relativamente pouco e que é uma figura tão polêmica, que algumas pessoas amam e outras odeiam. Queria tentar destrinchar aquela personalidade e a visão que ele tinha do Brasil. Por isso, este pra mim foi um livro mais angustiado – porque tinha muita coisa envolvida, inclusive as relações familiares.

Mas O fazedor de velhos, por exemplo, eu escrevi em dois meses, sem muito sofrimento, com a maior tranquilidade. O que só reforça a ideia de que a gente não tem nenhum controle sobre o destino dos livros. O fazedor de velhos talvez seja justamente o mais bem-sucedido, que foi o mais fácil de escrever. E a angústia não tem nada a ver com o capricho. Porque caprichar eu capricho em todos. Dou o melhor de mim pra todos.

VC. Qual a sua expectativa de embarcar na viagem do projeto Navegar é Preciso?

RL. Estou ansioso e eu vou viajar com a minha filha, que é excelente fotógrafa e nunca esteve na Amazônia. Eu já estive em Manaus, numa feira de livros, mas foi tudo bem corrido. Imagino que deve ser um ambiente e uma experiência muito agradáveis, inclusive porque todos os meus amigos que já foram falaram muito bem do projeto e da viagem. Disseram que os passeios são lindos e que as discussões sobre literatura acontecem de uma
maneira muito informal e amistosa, sem a conotação de “palestra do escritor”, o que eu acho ótimo.

Primeiro, porque este realmente não faz meu estilo, e segundo porque acho que a literatura deve estar na nossa vida cotidiana. Ela não deve ser colocada num pedestal. Literatura é o dia a dia, é a vida, é muita coisa misturada. Por isso minha expectativa é a melhor possível. Apesar de conhecer a obra, não conheço alguns dos escritores e artistas que vão viajar juntos e acho que vai ser uma oportunidade muito boa de, ao mesmo tempo, fazer um passeio e estabelecer contatos interessantes.

*Texto originalmente publicado na edição 131 da revista Vila Cultural, uma publicação mensal da Livraria da Vila.

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